segunda-feira, 15 de março de 2010

DUNS ESCOTO

Duns Scotus


Príncipe da escola franciscana e uma das figuras mais representativas do período áureo da Escolástica (Duns, na Escócia, 1265-1266 - Colónia, 8.11.1308).
I) Vida – Entrou muito jovem na Ordem dos Frades Menores (cerca de 1280). Ordenado sacerdote a 17.3.1291, continuou os estudos de teologia em Oxford (1291-1293) e Paris (1293-1296), onde teve como mestre, entre outros, Gonçalvo Hispano. Tendo regressado a Inglaterra em 1297, lê as Sentenças em diversos centros (studia) da Ordem: primeiro em Cambridge (Lectura Cantabrigiensis conservada no manuscrito 112 da biblioteca comunal de Todi), a partir de Julho de 1300 em Oxford (Lectura I Oxon., que constitui a primeira redacção do Opus Ox. ou Ordinatio) e, finalmente, em fins de 1302 e princípios de 1303 em Paris (manuscrito 66 do Merton College). Recusando-se a subscrever a petição de Filipe, o Belo, contra Bonifácio VIII, é coagido a abandonar Paris e vai continuar a sua carreira docente em Oxford. Em breve, sanado o conflito entre o Papa e o rei, regressa a Paris onde, mediante proposta do ministro geral, Gonçalvo Hispano, de 18.11.1304, obtém o grau de doutor em fins de 1305. De 1305 a 1306 comenta de novo as Sentenças, agora como mestre regente, no Studium franciscano em Oxford (1305-1306) e, em seguida, em Paris (1306-1307). Em fins de 1307, por motivos a que não deve ser estranha a situação provocada pelo processo contra os Templários e a desconfiança a que foram votados nos meios parisienses os defensores da Imaculada Conceição, é enviado para Colónia, onde morre aos 43 anos. O seu corpo repousa na Minoritenkirche dos Franciscanos Conventuais, em Colónia. Sobre o seu túmulo lê-se, a partir de 1870: Scotia me genuit, Anglia me suscepit, Gallia me docuit, Colonia me tenet. Foi honrado, ainda em vida, com o título de Doutor Subtil a que posteriormente se juntou o de Doutor Mariano. Com a doutrina divulgou-se a fama de suas virtudes, sendo-lhe prestado culto público em diversos lugares (Colónia e Nola). O processo de beatificação e canonização foi introduzido em 1905. Escoto legou-nos uma síntese vigorosa e original em cujo seio a razão desempenha papel relevante de acordo com a clássica formulação da philosophia ancilla theologiae. Dessa unidade orgânica é possível extrair os princípios fundamentais que informam e caracterizam o seu sistema filosófico-teológico.

1) Filosofia – Suas principais obras são o Opus Oxioniense (Obra de Oxford), Quaestiones de Metaphysica (Questões de Metafísica) e De Primo Princípio (Do Primeiro Princípio). Um dos grandes contributos de Scot para a história da filosofia, afirmam os historiadores, está no conceito de hecceidade ( haecceitas ). Por esta teoria, valoriza a experiência, e distancia a preocupação exclusivista da filosofia com as essências universais e trancendentes.
O problema da cognoscibilidade dos seres imateriais (metafísica), mormente de Deus, determina e comanda, em grande parte, a especulação filosófica do Doutor Subtil. Poderá a inteligência humana romper os limites da sua finitude e elevar-se até Deus (Ser Infinito)?
As grandes teses sobre o objecto próprio e adequado da inteligência, sobre a univocidade do ser e natureza da abstracção, ao mesmo tempo que estabelecem em bases sólidas a legitimidade da metafísica, constituem resposta original e profunda a um tal problema.
A) Metafísica – a) Noção de ser: Para o comum dos escolásticos, o ser diz-se de tudo quanto existe ou pode existir em realidade. Simplesmente a noção de ser atinge em Escoto um grau de abstracção anteriormente desconhecido. Com efeito, o ser enquanto ser (ens inquantum ens) é concebido na sua pura formalidade, independentemente não só de qualquer determinação categorial, mas ainda dos seus modos intrínsecos (finito ou infinito). Equivale, por isso, a entidade pura e diz-se de tudo o que é inteligível em si mesmo. Absolutamente indiferente à natureza das coisas, constitui, por isso mesmo, uma verdadeira noção transcendental. b) Objecto primeiro e adequado da inteligência: Por um lado, contra os excessos do iluminismo augustiniano (Henrique de Gand) para o qual Deus constitui objecto primeiro da inteligência e, por outro lado, contra as insuficiências do empirismo aristotélico (Egídio Romano, Godofredo de Fontaine) que propõe como tal a quidditas rei materialis, Escoto sustenta, pelo contrário, que o objecto primeiro da inteligência na ordem da adequação ou proporção (primum in ordine adaequationis) é o ser enquanto ser. A ele, com efeito, se acha naturalmente ordenada a intencionalidade da inteligência, enquanto só por ele as demais coisas se tornam inteligíveis. Deste modo o ser, precisamente porque incluído em todas as coisas, define o horizonte ou capacidade operativa da inteligência enquanto é ele que fornece o ângulo
ou perspectiva de acesso ao vasto panorama da realidade. Graças a ele nenhuma realidade é excluída: por ele se transcende o mundo da experiência e se abre caminho para a metafísica e para o Ser infinito.
c) Univocidade do ser: Da tese anterior decorre necessariamente a afirmação da univocidade do ser. Com efeito, o ser é objecto adequado da inteligência porque lhe permite seguir todos os rumos, cobrir todas as distâncias e cinturar, num raio de luz, a realidade inteira, numa palavra, porque predicável identicamente de tudo, de Deus e das criaturas. A univocidade impõe-se, deste modo, como corolário da transcendentalidade e omnicompreensividade do ser. Escoto, porém, forneceu, da mesma, provas mais directas. Para que um conceito seja unívoco, diz, basta que em si mesmo possua tal consistência e unidade lógica que não se possa afirmar e negar ao mesmo tempo da mesma coisa sem que se caia em contradição; por outras palavras: que dele, usado como termo médio de um silogismo, se possa concluir validamente.
Ora é o que sucede precisamente com o conceito de ser, considerado independentemente de qualquer determinação categorial e dos modos intrínsecos. Trata-se de um verdadeiro conceito transcendental que pela indeterminação e simplicidade de conteúdo (compreensão) pode ser dito de tudo aquilo que se constitui e define por oposição ao nada – a sua absoluta simplicidade impede a variação de sentido e confere-lhe um só e mesmo significado. d) Transcendentais: Tudo o que pode atribuir-se ao ser como tal, anteriormente à sua diversificação categorial, constitui, como ele, uma noção transcendental e entra, por isso, nos domínios da metafísica. Escoto distingue três classes de transcendentais: aa) transcendentais convertíveis (passiones entis: unum, verum et bonum); bb) transcendentais disjuntivos (finitoinfinito, necessário-possível, acto-potência e semelhantes); cc) transcendentais que significam perfeições puras, isto é, que de si mesmas não evocam qualquer imperfeição (sabedoria, vontade, inteligência), etc. Nenhum dos transcendentais acrescenta qualquer novidade ao ser; o seu papel consiste em traduzir um aspecto, uma modalidade de ser.
Assim, os modos transcendentais de finitude e infinitude não são ditos do ser in quid, mas só in quale, porquanto não modificam a essência do ser, apenas denotam a sua intensidade; são, portanto, modos intrínsecos da realidade. Em resumo, a metafísica de Escoto tem como objecto o conceito comuníssimo (unívoco) de ser, a que se vêm juntar, enriquecendo-o, os transcendentais. Estes e, de um modo especial, os disjuntivos conduzem-nos ao conhecimento de Deus – meta última da metafísica escotista. Demonstrada a existência de Deus, as perfeições simples ou puras permitem-nos aplicar-Lhe outros atributos. e) Distinção formal: Os seres concretos são integrados de elementos metafísicos os quais, embora idênticos numa mesma res, possuem fisionomia
própria. Estas entidades ou realidades concorrentes numa mesma res realizam a distinção formal ou, melhor, a não-identidade formal, anterior a qualquer consideração por parte da inteligência (por exemplo, entre o ser e os transcendentais convertíveis: unum, verum et bonum; entre a alma e as suas potências e estas entre si).


Qual a Importância de Scotus?
Scotus vive em um contexto desafiador e, ao mesmo tempo, extremamente fecundo. O século XIII, no qual também viveram Tomás de Aquino e Boaventura, é atravessado por duas trajetórias filosófico-teológicas bem definidas: agostiniano-boaventuriana e aristotélico-tomista. E uma única matriz polêmica a provocá-las e animá-las: o ingresso das obras de Aristóteles na universidade de Paris.
Nesse contexto, Scotus assume uma postura crítica face aos pressupostos e às principais posições defendidas por ambas as escolas, revelando-se como um pensador original. Destaca-se pela fina acribia em bem discernir, o que lhe possibilitou dissipar inúmeras confusões e esmerar-se na especulação acerca das questões filosóficas e dos mistérios da fé. O Doutor sutil se caracteriza, ainda, por um raciocínio deveras singular capaz de, num cerrado diálogo com seus interlocutores, desconstruir seus argumentos e forjar conceitos e linguagem novos cada vez mais precisos e inclusivos. Com Scotus, talvez o pensamento cristão tenha atingido o mais alto vértice da especulação.
Para Sidney Silveira Duns Scoto é considerado como pai da Modernidade. Este artigo mostra como a filosofia de Duns Scoto, contrariando a filosofia de São Tomás abriu as portas para todos os erros da Modernidade, especialmente para a filosofia modernista de Maurice Blondel e a abstrusa Fenomenologia de Husserl que tanto influiu no Concílio Vaticano II.
No século XIV, o frade franciscano Duns Scot refunda a metafísica, ao adotar critérios tão inovadores, tão sutilmente contrapostos à metafísica clássica (refiro-me, sobretudo, à aristotélica e à tomista), que na verdade parece tratar-se de outra ciência. Quem o diz não sou eu, mas o professor emérito da Universidade de Bonn, Ludger Honnefelder — um dos maiores e mais respeitados estudiosos da obra de Duns Scot nas últimas décadas, no cenário internacional.
Em seu conjunto, essa “refundação” scotista abriu, a meu ver, os seguintes flancos para os pensadores dos séculos seguintes: Intuicionismo em gnosiologia. Uma das teses de Duns Scot é de que, no estado de natureza instituída por Deus (ou seja, o estado adâmico), o homem conhecia os inteligíveis diretamente, numa espécie de clara visão das essências. Sendo capax totius entis, o intelecto teria — inscrita entre as suas possibilidades metafísicas — a intuição direta dos inteligíveis. E mais: ainda de acordo com o Doutor Sutil, o homem voltará a ter esse tipo de cognitio intuitiva no estado de bem-aventurança — na visão beatífica. Ora, retire-se daí a premissa teológica, e cairemos na tese husserliana de que conhecemos a essência dos entes por intuição direta. Como se fôramos anjos... Curiosamente, ao propor a estrita separação entre teologia e metafísica (e, conseqüentemente, gnosiologia), Scot parte de uma concepção, ou melhor, de uma pressuposição... teológica!
Separação entre fé e razão. Duns Scot traça uma rígida e intransponível linha divisória entre o conhecimento estritamente racional e o conhecimento a que a razão pode chegar sob a luz da fé (sub lumine fidei). Ele distingue a filosofia primeira, que tem como objeto o ente segundo a entidade (entis secundum suam entitatem), da teologia ou ciência dos beatos (scientia beatorum), que estuda Deus a partir da Revelação, e que é chamada por Scot de “nossa teologia” (theologia nostra) — que o Doutor Sutil não classifica como ciência (a meu ver, por não aplicar a ela a distinção tomista entre evidência quoad se e evidência quoad nos). Perde-se, aqui, a noção de que a filosofia é “serva da teologia” (ancilla theologiae), já que se trata não de dois conhecimentos complementares e harmônicos (sendo a filosofia subalternada em relação à teologia, como em Santo Tomás), mas estanques, independentes um do outro.
A partir daí, a história da filosofia mostra muito bem qual foi a senda aberta com a “refundação” scotista — sobretudo com a separação entre teologia e metafísica: crescente afastamento entre fé e razão (a primeira logo cairá no pietismo de vários tipos, já que Deus deixará de ser objeto do escrutínio da razão, e a segunda soçobrará no racionalismo de variados matizes); esvaziamento paulatino da metafísica, até a sua “destruição” em Kant e, logo depois, queda nos materialismos os mais abstrusos, já no século XIX (talvez o mais antimetafísico de toda a história da filosofia).

Scotus é ainda Atual?
Scotus é filho daquele período plasticamente descrito pelo grande historiador Huizinga como “outono da Idade Média”. Fruto maduro daquela fecunda estação, ele sorveu no melhor dos modos a mais genuína seiva que corria pelos veios mais profundos dos sulcos de então, situando-se, para todos os efeitos, entre a Idade Média e a Modernidade. O “nosso tempo” parece marcado pela experiência da dissolução dos grandes sistemas, pela deslegitimação das grandes narrativas, pelo desencanto diante dos grandes projetos construídos sobre a razão, que parecia constituir um sólido alicerce. Chega-se a falar em pós-Modernidade como termo apto a exprimir o total desencanto face aos projetos totalizantes e por demais pretensiosos da Modernidade. Denominador comum a todos os projetos da Modernidade seria propriamente a “epistemologia forte”: racionalista e naturalista. No entanto, poder-se-ia dizer que a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado e proposto por Scotus, em fins do século XIII e inícios do século XIV. Talvez seja essa a razão do crescente interesse, perceptível em nossos dias, por Scotus e seu pensamento.
Mauro Ferreira (trabalho apresentado na Universidade Presb. Mackenzie)


BIBLIOGRAFIA

CHÂTELET, François. História da Filosofia - A Filosofia Medieval. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983.
De Boni, Luis Alberto (Org.), João Duns Scotus (1308-2008). Homenagem descotistas lusófonos, Porto Alegre / Bragança Paulista, ediPUCRS, 2008.
DUNS SCOT. Seleção de textos. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
FERRATER MORA. Diccionario de Filosofia. México: Editora Atlante, 1944.
SILVEIRA, Sidney - "Duns Scot: o ancestral da modernidade". http://www.montfort.org.br/index.php?secao=veritas&subsecao=historia&artigo=duns_scoto&lang=bra Associação Cultural Montfort.

domingo, 28 de fevereiro de 2010


Ingenuamente, alguns estudantes de Introdução à Filosofia falam de
Descartes como um pensador ateu, quando se restringem à declaração
fundamentalista do “penso, logo, existo” sem ter conhecimento
do encadeamento lógico do seu pensamento, assim como é costume,
no senso comum, fazer-se uma associação entre filosofia e ateísmo ou,
num sentido inverso, estabelecer uma incompatibilidade entre Filosofia e Teologia, Ciência e Religião e Fé e Razão. Por isso, dissipando essas
ingenuidades, o estudo cartesiano quer revelar que a obra de sua filosofia traz
o conceito de natureza misturado aos conceitos de Deus e de Homem.
Pois, ao buscar as idéias claras e distintas, ele deseja captar as verdades
eternas do Ser, que implica o projeto de pensar Deus, a Natureza
e o Homem.
René Descartes (1596-1690) filósofo, físico, matemático
é o criador do conhecimento fragmentado. Mas como pode ser inferido,
de forma geral, tal pensamento, se o Filósofo visava a abarcar
tudo o que a res cogitans pudesse intuir e chegar às idéias claras e
distintas a partir da percepção das verdades eternas na res extensa? É
certo que a única substância privada, não extensa e indivisível, é o
pensamento, e, se este incide sobre a matéria, que é pública, extensa e
divisível, ele pode fragmentar, analisar, enumerar e sintetizar toda sorte
de corpo a fim de ter a compreensão de sua natureza. Esse método
analítico usado por Descartes fora herdado dos filósofos geômetras
gregos e visa, preferencialmente, a ser o caminho perfeito para a pesquisa
científica – a sua física filosófico-teológico-experimental demonstra
ser o elemento fundamental do seu sistema. Por isso, a resposta à
pergunta consiste na existência da res infinita. Pois o Deus cartesiano
é o postulado para a unificação do saber humano.