quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

FILOSOFIA DA CIÊNCIA NA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Crise e Mudança O final do século XIX e o início do século XX encontram-se sob o signo de profunda crise filosófica, cujos sintomas são a aparição de movimentos contrários às duas posições mais potentes do pensamento moderno, que são o mecanicismo materialista e o subjetivismo. Esta mudança de situação ultrapassa as fronteiras do campo da filosofia; podemos até compará-la com a profunda crise com que, na época do Renascimento, se iniciou toda a nossa cultura moderna. É sumamente difícil traçar um quadro completo de suas múltiplas e intrincadas causas; todavia, os fatos síio claros: a Europa nessa época é sujeita a uma profunda remodelação do pensamento social, tem de enfrentar graves perturbações econômicas, inovações radicais no domínio da arte e notável revolução em matéria de religião. Aliás, todos concordam em considerar o início do século XX, não já como o final de um breve período, senão como a liquidação de toda uma época histórica muito mais ampla ora conclusa, de sorte que o nosso tempo não pertence mais à chamada era moderna. Também tem sido defendido, e acaso não sem motivo, que esta recente revolução é mais radical do que a que se produziu no Renascimento. Em todo caso, não resta dúvida que se manifesta em todos os setores da vida uma atitude fundamental diferente, e as lutas e guerras, de que temos sido vítimas, têm feito todo o possível para acelerar o processo de decomposição próprio da crise. Apesar destas conexões, o aparecimento simultâneo de movimentos tão diferentes por sua determinação histórica e pelo fim que têm em vista representa um acontecimento sem precedentes na história do pensamento humano. De fato, tais movimentos operam uma transformação completa da filosofia. a- crise da física Newtoniana. A maioria dos filósofos do século XIX considerava a física de Newton como a imagem absolutamente verdadeira do mundo. Viam nela a objetividade da realidade, na qual tudo se reduz às posições e impulsos de átomos materiais (mecanicismo). Supondo que pudéssemos conhecer as posições e os impulsos das partículas materiais num dado momento, acreditava-se que poderíamos deduzir daí pelo cálculo e segundo leis mecânicas toda a evolução anterior e futura do mundo (determinismo de Laplace). Os princípios e até as simples teorias da física eram tidos por absolutamente verdadeiros (absolutismo). O "dado" mais simples parecia ser a matéria, e a este dado simplicíssimo devia ser tudo logicamente reduzido(materialismo). Além disso, a física, a mais antiga das ciências da natureza, encontrara sua confirmação na técnica, e todavia não haviam dado sinais de vida outros ramos do saber, principalmente a história, que deviam florescer no decurso do século XIX. Em fins do século XIX e começos do século XX, principiou a. ser posto em dúvida o valor desta concepção física do universo. Não é exato crer, como sucede a cada passo, que a nova física não conhece mais a matéria, que rejeita em bloco o determinismo, que, via de regra, não admite proposições certas, etc, contudo é certo que muitas coisas, que até agora se acreditava serem absolutamente seguras, se tornaram problemáticas. Assim, por exemplo, não resta dúvida, hoje em dia, que a matéria, longe de ser simples, é, ao invés, extremamente complexa, e que seu estudo científico oferece ainda graves dificuldades. Além disso, parece ser impossível determinar exatamente, a um tempo, a posição e o impulso de uma partícula material, e, em todo caso, o determinismo à maneira de Laplace é indefensável. Se o determinismo em geral já caducou, ou se pode continuar sobrevivendo noutra forma qualquer, é questão que todavia prossegue sendo posta pelos físicos mais eminentes. Eis como se expressava o famoso astrofísico Eddington: "Sou indeterminista da mesma maneira que sou anti-a-lua-é-feita-de-queijo-fresco…; duas hipóteses são estas que não temos nenhuma razão de admitir". Também o mecanicismo admitiu pelo menos novas formas. Whitehead, um dos melhores conhecedores da questão, observa atiladamente que a física antiga figurava o mundo como um prado onde cavalos galopavam em plena liberdade, ao passo que a física nova o representa como um lugar atravessado por uma rede ferroviária na qual os trens percorrem uma via de antemão traçada, e que portanto o novo "mecanicismo" se aproxima muito de uma concepção orgânica da realidade. Enfim, a elaboração da teoria da relatividade e da teoria quântica, bem como outras descobertas da física, puseram em dúvida toda uma série de resultados considerados como absolutamente verdadeiros. Estas transformações operadas na física repercutiram na filosofia de duas maneiras. Do fato de os físicos não chegarem mais a acordo entre si sobre se e em que medida importa manter intactos o mecanicismo e o determinismo e de não se pouparem a esforços para captar’ cientificamente a matéria, que de novo mais e mais se complica, e de terem de admitir a relatividade de suas teorias, resulta que o mecanicismo e o determinismo não podem continuar apelando para a autoridade da física e que a explicação do ser pela matéria se torna sumamente problemática. Vários cientistas eminentes tiraram destes fatos conclusões ainda mais avançadas, uma vez que, tendo em vista os resultados obtidos pela física e biologia recentes, julgam-se obrigados a adotar o espiritualismo, o idealismo e até o teísmo. Citemos tão-somente os nomes bem conhecidos de Sir Arthur Stanley Eddington (1882-1944), Sir James HOPWOOD Jeans (1877-1946), Max Planck (1858-1947) entre os físicos e os astrônomos, e de Sir Arthur Thomson (1801-1933) e John Soott Haldane (1860-1936) entre os biólogos. Contudo, embora seja possível encontrar em suas doutrinas muitos aspectos justos e interessantes, principalmente quando fazem a crítica do materialismo, suas conceituações construtivas são, as mais das vezes, tão caracteristicamente eivadas de ‘diletantismo que os filósofos especializados lhes atribuem muito pouco crédito. Não resta porém dúvida que tais cientistas filosofantes exerceram profunda influência sobre as multidões. Do ponto de vista filosófico, assume grande importância o fato de tais teorias terem podido ser emitidas por eles, pois íbro mostra suficientemente quão distantes hoje estamos da mentalidade do século XIX. Mais importante é todavia a outra repercussão da crise. Pôs ela em evidência não ser possível que a filosofia aceite, sem análise prévia, conceitos e princípios físicos, nem que considere como válidas a priori, desde seu ponto de vista, as conclusões da física. Sem dúvida, Descartes e Kant foram, neste particular, vítimas de um equívoco ingênuo. Por outro lado, por meio destas descobertas a crise da física suscitou o chamado pensamento analítico, que devia ser algo típico na filosofia do século XX. b- A crítica da ciência. A situação acima descrita não é só o resultado de um mero desenvolvimento das ciências. Concorreram também para criá-la diversos pensadores que, muito antes de a crise se desencadear, haviam analisado e em certo sentido posto em dúvida os métodos das ciências da natureza. Decisiva nesta crítica da ciência foi a interferência de filósofos franceses, como émile Boutroux (1845-1921, De la contingence des lois de la nature, 1874; De l’idée de loi naturelle, 1894), Pierre Duhem (1861-1916, primeira obra de importância: Le mixte et Ia combinaison chimique, 1902) e Henri Poincaré (1853-1912, La science et l’hypothèse, 1902). Paralelamente aos esforços desta escola surgem os trabalhos do empiriocriticismo, o qual arrancando de uma posição positivista chega a conclusões ainda mais radicais. Richard Avenarius (1843-1896) publicou entre 1888 e 1890 sua Kritik der reinen Erfahrung (Crítica da experiência pura) e Ernst Mach (1838-1916) trouxe a público em 1900 sua obra principal, na qual faz uma crítica extremamente penetrante do valor absoluto da ciência. A crítica da ciência defrontou-se tanto com o valor das idéias quanto com as teorias científicas. Análises demoradas e Investigações históricas mostraram que umas e outras são em grande parte de natureza subjetiva. O sábio não se contenta com dissecar arbitrariamente a realidade, senão que opera constantemente com conceitos que despontam em sua mente. No que tange às grandes teorias, em derradeira instância elas nada mais são do que instrumentos cômodos para ordenar a experiência: "nem verdadeiras nem falsas, mas úteis" (Poincaré). Note-se que nenhum destes críticos franceses, nem sequer Poincaré, era convencionalista (*). O que eles queriam era a prova de a ciência’ se encontrar muito longe do ideal de infalibilidade que no século XIX comumente lhe era atribuída. Os empíricos criticistas alemães foram ainda mais além e professaram um relativismo muito chegado ao ceticismo. O "convencionalismo" é a teoria segundo a qual os conceitos científicos são fruto de uma "convenção", e, por conseguinte, são "convencionais". Em suma, a ciência perdeu aos olhos dos filósofos grande parte de sua autoridade, e isso contribuiu para acelerar o processo de decomposição aberto pela crise Interna da física. De ora avante não mais seria possível defender a concepção newtoniana do universo, a qual constituía a pressuposição fundamental do kantismo e de todo o pensamento europeu até então. * Texto adptado: Mauro Ferreira